Espontaneidade

 

            Quem é que matou a espontaneidade? Provavelmente foram as tecnologias e uma outra coisa que tem crescido de uma maneira ainda mais assustadora do que as tecnologias.

            Sim: o que é que as sociedades actuais têm vindo a produzir a um ritmo mais alucinado do que vídeos idiotas no YouTube ou canções intragáveis de pop-lixo? Celebridades instantâneas? Talvez, mas eu queria chamar agora a atenção para a proliferação diabólica das leis. Isso mesmo. Leis, regras e regrinhas.

            Acredito que se conseguíssemos pôr algum travão a estas duas coisas, leis e tecnologias, teríamos pelo menos metade dos nossos problemas resolvidos. Depois da pandemia, sobretudo, não há como sair a passear, apanhar um pouco de sol, sem nos afligirmos logo com a possibilidade de uma brigada da GNR, com cães, ASAE e a avó Gertrudes, nos cair em cima por andarmos a apanhar sol a mais – ou a menos, que também há de certeza leis para isso.

            A única espontaneidade restante parece residir (ou circular) no trânsito, apesar de tudo. E não é bonita: é a espontaneidade dos brutos, dos que buzinam e mandam mas é dar uma volta, oprimidos certamente pelas normas rodoviárias – e talvez ressentidos por não serem abertamente declarados os melhores motoristas do mundo. Não é bonito, mas sempre é um assomo de liberdade.

            Isto apenas me faz pensar na eterna Índia, onde tudo flui não só com espontaneidade, mas aparentemente com espírito e graça. Também por lá buzinam no trânsito, mas não com fortes tons de autoridade e presunção: fazem-no como quem quer compor um bailado e uma sinfonia de natureza cósmica. São buzinas que acalmam, as da índia. E sobretudo libertam o espírito, no lugar do palavrão.  

            Naturalmente que juntando ali mais umas vacas, só para terem a quem chamar cornudo, se for mesmo necessário, e o resultado é uma tranquilidade no trânsito superior à do intestinal de Fátima Lopes.

            Não se pense porém que nesta aparente anarquia não existem regras. Na verdade há muitas mais, uma vez que cada motorista tem as suas próprias. Isto tem dado muito que pensar a incontáveis filósofos; mas é óbvio que o segredo está obviamente no não estabelecimento constante e forçado, por parte de «autoridades superiores», de cada vez mais leis. É realmente simples.

            (É a minha vez de apanhar um pouco de sol aqui na prisão de onde escrevo; na próxima oportunidade abordarei o tema das tecnologias. E, entretanto, abaixo com as malditas leis!)

 

 

Lopes Camelo

 

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